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Leia gratuitamente o capítulo de “Viu, deixa quieto…”

Capítulo 1

FEVEREIRO, 2003

Começar a faculdade é muito desafiador. Afinal, quem disse que aos 17 anos você está pronta para sair de uma sala de aula “controlada”, que exige de você a necessidade de pedir permissão para ir ao banheiro e entregar lição de casa, para um universo em que os professores entram em sala, colocam um número na lousa e saem? Pois é… e sabe a distância entre essa realidade e aquela? Dois meses! Em apenas dois meses eu saí do “trazer bolacha recheada para o recreio” para o “quer um teco”, frase dita pelo cara da cadeira ao lado, obviamente me oferecendo alguma droga lícita ou ilícita.

Não faz muito sentido. Quem disse que eu estou pronta para decidir o que quero fazer da minha vida inteira tendo menos de 20 anos? Parece que a sociedade tem um critério um tanto deturpado sobre o que é juventude. Há um tempo atrás, lendo um livro de época (leia-se Jane Austen, claro), descobri que as pessoas aos 15 já estavam casadas, aos 20 tinham muitos filhos e aos 40 já eram idosas. Nessa realidade, é ‘ok’, totalmente aceitável exigir de uma adolescente saber o que vai fazer para o resto da vida, afinal de contas, ela só vai ter mais 20 anos para viver!

Mas, de verdade, não sentia ter maturidade nenhuma com meus 17 aninhos de experiência. E ali estava eu, entrando dentro de uma van para ir à faculdade. Pode até parecer besteira ter que pegar uma condução para ir, já que, a minha cidade nem é tão grande quanto uma metrópole, que exigiria muitos e muitos meios de transporte até chegar ao destino final. Ainda assim, é mais barato ir de van do que pegar ônibus, táxi, só que, muito mais caro do que ir de bicicleta.

Eu tentei convencer minha mãe de que seria uma excelente ideia pegar minha bicicleta e ir para a faculdade, no entanto, na minha primeira tentativa, fui atropelada na rotatória a apenas 500 metros do destino. O que fez com que eu faltasse aos primeiros dias de aula. Pois é, parabéns para Melissa! Excelente motorista sobre duas rodas. Fiquei pensando sobre como seria tirar carteira de motorista, e desisti na mesma hora. Entrei na van ainda vazia e me sentei ao fundo, coloquei os fones de ouvido e tentei me esconder em “algum lugar no meio do caminho”.

Estava ouvindo — de novo — a décima segunda faixa de Nevermind, quando algo chamou minha atenção. Muitas pessoas já tinham entrado e se sentado, sem que eu me despertasse da hipnose causada pela voz rouca de Kurt Cobain, mas dessa vez, algo me acordou. Ela entrou e veio em minha direção. Eu conhecia aquela camiseta. Fiquei encarando a estampa que parecia um quadro renascentista e percebi que só parei de encarar quando ela me cumprimentou.

— Oi, tudo bem?

Minha timidez sempre foi tão grande que apenas acenei com a cabeça e dei um sorriso. A menina de cabelos longos pintados de preto parecia que ia falar mais alguma coisa, mas foi interrompida por um grito que vinha da frente do veículo. Não era bem propriamente um grito, mas alguém falando muito, muito alto.

— É isso aí, tio Gê! Toca pra frente que hoje vai ser punk!

— Ela falou “punk”?! — e quando percebi, tinha falado isso em voz alta e automaticamente levo a mão à boca numa tentativa de me calar.

— Parece que foi mesmo, animada, né? — respondeu a menina ao meu lado. — É a Dani, ela é meio doidinha, mas é muito gente boa e uma excelente vocalista, como você pôde ver a potência da voz — ela respondeu antes mesmo que eu pudesse perguntar e acrescentou: — A propósito, eu sou a Larissa e você?

— M-Melissa…

— Prazer, Melissa! Vamos nos dar muito bem. Você gosta de grunge, eu de metal e a Dani de punk. É a combinação perfeita.

Continuei olhando intrigada, tentando entender como ela sabia do meu gosto por grunge e, de repente, olho para o bottom na minha mochila, a carinha feliz que entrega minha paixão por Nirvana, junto de um bottom escrito Pearl Jam. Então, faço as associações e me lembro da estampa de sua camiseta, era a capa de ‘Century Child’, o recente lançamento do Nightwish. Tudo faz sentido.

Assim que chegamos à faculdade, todos saíram disparados, cada um para sua sala. Eu ainda estava perdida, já que, ao contrário de todos ali, era meu primeiro dia. Depois do acidente com a bicicleta, faltei mais duas vezes até conseguir colocar o pé com firmeza no chão. E estava eu ali, me sentindo a personagem perfeita de um romance da Sessão da Tarde, tentando calcular a distância do degrau da van para a calçada, com medo de torcer o pé (de novo).

Larissa já estava longe, quando percebeu que eu não a acompanhava, olhou para trás e voltou para me dar a mão e ajudar com a descida. Na velocidade com que ela caminhava, olhando para baixo, transformava minha ‘Sessão da Tarde’ em ‘Cinema em Casa’, algo próximo a um filme de terror: Larissa com os cabelos longos lisos, contrastando com sua pele muito branca e várias correntes penduradas na calça preta. Hesitei um pouco ao aceitar sua ajuda, mas acabei acolhendo sua mão. Acho que eu poderia chamá-la de Samara.

— Muito obrigada. Desculpa, é que torci o pé faz poucos dias e ainda sinto um pouco de dor e tenho medo de piorar tudo.

— Ah, tudo bem. Qual a sua sala?

— Estou no primeiro semestre de Contabilidade.

Ela levantou uma sobrancelha e fez uma careta.

— É, tá bom, não posso te julgar. Estou no primeiro de Secretariado.

Eu ia abrir a boca para perguntar, mas ela foi mais rápida: — Sim, sim, quem faz Secretariado na vida, né? Afinal, o que se aprende em um curso como esse! É isso que as pessoas perguntam. Meu pai me diz que estou fazendo faculdade para servir cafézinho… — ela revirou os olhos e continuou falando. — Falando assim parece até que eu não sabia qual curso fazer…

— Ela realmente não sabia qual curso fazer e se matriculou no mais barato! — A menina que gritava na frente da van passou por nós e se intrometeu na conversa. Ela estendeu um pacote de Halls e ofereceu a nós duas. Eu recusei e continuei caminhando sem saber ao certo para onde ia.

— É… é isso mesmo…fazer o quê — Lari assentiu com um olhar um pouco triste.

— Mas a faculdade é só uma desculpa pra gente continuar estudando juntas, apesar de ela não admitir que não vive sem mim.

— E a Dani é muito convencida, continua achando que o mundo inteiro gira ao seu redor. Eu queria mesmo fazer Secretariado para poder um dia trabalhar em uma grande empresa, ter um chefe gato, conquistá-lo e me tornar madame um dia.

Dani olhou para Lari com um olhar matador e a segurou pelo braço.

— Retire a.g.o.r.a. o que você falou! Não posso ser amiga de uma mulher machista! Muito menos ter uma banda grrrl com alguém que concorda com uma ideia dessas.

Continuei assistindo às duas brigarem, enquanto me perguntava se minha sala já tinha passado. Aparentemente, depois de discutirem as bases do feminismo moderno, elas discutiam sobre um repertório, o que me fez concluir que as duas tocavam juntas em uma banda. Achei simplesmente o máximo conhecer duas meninas que tocavam e, ainda por cima, tinham uma banda… e de rock!

— E você, Mel?

As duas me encaravam. Mel? Acho que era eu, né?

— Eu? — perguntei só para ter certeza.

— Não, a estátua do tiozinho que está aí atrás de você. Claro que é!

— Ah, tá… eu… — olhei para a estátua atrás de mim e deixei soar assim, pra ver se alguma delas repetia a pergunta inicial, a qual eu não tinha prestado a atenção.

— Se ela tocar alguma coisa deve ser teclado, no máximo baixo. Mas duvido que toque alguma coisa — Dani falou e continuou andando em nossa frente.

Ela acertou.

— É… toco baixo — e teclado também, mas ocultei essa parte, só para não dar o braço a torcer para Dani.

— Bingo! Eu sou ótima nisso — Dani mandou um beijo no ar e entrou na sala logo à frente, dando leves batidinhas no cabelo curto loiro, que tinha algumas mechas pintadas de rosa.

— Que incrível, você toca baixo! Não acredito, é o que estávamos precisando pra banda! A Dani vive falando que dá pra ter uma banda só com bateria, guitarra e vocal, mas é porque ela gosta de White Stripes, eu acho que fica um lixo.

Dei um sorriso meio sem graça, não que White Stripes fosse um lixo completo, mas não era lá a melhor coisa já produzida pelos rockeiros dos anos 2000. Larissa parou de falar e me indicou uma sala ao lado, tinha chegado ao meu destino. Fiz um aceno para me despedir, mas ela me impediu.

— Ensaio todos os sábados, às duas da tarde, na minha casa. Na hora de sair, conversamos melhor sobre os equipamentos.

Parei na porta da sala, observei o clima e fui direto para o fundo, bem no canto. Fundão, minha vida! Encontrei o lugar perfeito para me esconder em qualquer lugar, junto com meus números, meus arquivos e toda a papelada que me fazia estar completa e reconfortada. Sentei, mas não absorvi nada do que o professor falava lá na frente, pois a única coisa que pensava era em ter uma banda de rock, apesar de toda a minha timidez.

Eu estava mesmo pensando nisso?

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